sábado, 29 de dezembro de 2012

A Sinfonia

A Symphony of Life (por Katchakul Kaewkate)


Ricardo era um rapaz que possuía uma forma peculiar de enxergar as pessoas. Ele não conseguia enxergar apenas seus rostos, ouvir suas vozes, a maneira como se vestiam, se comportavam, e agiam perante ele. Ricardo tinha uma visão que podemos chamar de "aprofundada" dos seres humanos. Não aprofundada no sentido psicológico ou espiritual.

A verdade era que Ricardo podia ouvir as pessoas que passavam por ele nas ruas, aquelas com quem se relacionava, enfim, todas aquelas que, por breves momentos, fizeram, de alguma forma, parte de sua vida, cantando uma canção que muitos nem sequer consideravam como tal.

Ricardo ouvia as pessoas em seus momentos de prazer. Isto mesmo, ele olhava pra cada rosto de cada homem e mulher com quem estabelecia um contato meramente visual ou auditivo, e conseguia ouvir em sua mente os gemidos de prazer libertos por elas quando faziam amor. E isto era algo que deixava Ricardo completamente maravilhado com a vida de um modo pleno. Mas também causava-lhe, como conseqüência, uma insatisfação, pois conforme aquelas canções de prazer todas se acumulavam em sua memória, aumentava também em sua alma a necessidade de libertá-las, de disseminá-las, de transmitir ao mundo o que só ele conseguia ouvir de uma forma tão íntima.

Ricardo passou a enxergar cada ser humano na face da Terra como um instrumento musical. Alguns solitários em seu prazer, outros acompanhados. A ele não importava a orientação sexual das partes envolvidas naqueles momentos de puro êxtase orgástico. O que lhe importava era a beleza sublime do som gerado. E dentro de sua cabeça ele começou a enxergar a harmonia entre aqueles sons todos, aqueles instrumentos sob a forma de corpos humanos nus gerando prazeres mutuamente.

Ele começou a descobrir um tema que permeava todos aqueles sons. Começou a desvendar melodias em meio a todos aqueles gemidos aparentemente aleatórios. E a partir disto, Ricardo começou a tecer seu sonho, ou melhor, começou a tecer o caminho que ele devia trilhar para realizá-lo.

Ricardo era bem abastado, aliás. Tinha facilidades que poucas pessoas tinham. Portanto, podia viajar pra qualquer parte do mundo sem muito esforço. Tinha uma vida privilegiada, a qual podia dedicar única e exclusivamente à arte. Mas a arte dele, como já ficou suposto, era uma arte que poucos enxergavam como tal.

E, seguindo o caminho para a realização de seu sonho, Ricardo começou a viajar pelo mundo.

Como dinheiro não era problema a ele, pôde agir excentricamente sem grandes questionamentos da parte de quem participava de suas excentricidades.

A primeira delas foi em Amsterdã, onde propôs a um casal o seguinte: "Quero que vocês façam amor diante de mim. Pode ser no lugar que vocês preferirem. Eu não vou interferir, nem nada. Só vou pedir que me permitam que eu grave seus gemidos enquanto fazem amor. É tudo que me interessa. Pago o quanto quiserem."

O casal, obviamente, achou aquilo bem estranho, mas aceitaram a proposta. E Ricardo nem precisou pagar nada a eles, pois, ao final da sessão de amor, confidenciaram que foi uma das melhores noites de amor que já tiveram, que a presença dele havia tornado tudo mais excitante, e que não era necessário nenhum pagamento, pois já estavam satisfeitos com o que sentiram ali, com ele gravando a canção dos dois.

Foi a primeira de muitas gravações. Ricardo percorreu o mundo, passou pelos mais variados países, por diferentes culturas. Foi uma jornada que durou dez anos, mas ao final dela, seu repertório era tão vasto, que não sabia nem por onde começar. Ficou cinco anos só por conta de ouvir toda aquela coleção de "orgasmos musicais", procurando desvendar os encaixes entre eles, e as diferentes formas de combiná-los, sobrepô-los, alterná-los.

E daí foram mais dez anos até que finalmente conseguisse o que tanto sonhou: Ricardo, após uma década de clausura na enorme estação de edição sonora que construíra em seu quarto na mansão onde vivia, finalmente havia concluído a Sinfonia do Amor. Formada pelos gemidos de prazer de milhões de amantes de todo o planeta, conectados entre si por uma rede sonora, cuja fonte era uma só: o amor que sentiam pelo ser amado, pela vida, pelo próprio ato de viver.

E lá estava Ricardo, com uma sinfonia que tinha quase duas horas de duração, pronto pra compartilhá-la com o mundo.

Organizou uma apresentação no maior salão de ópera da Europa e, aproveitando-se da influência de sua família, conseguiu que ela fosse transmitida mundialmente, anunciando-a como seu maior legado ao mundo, e como aquilo que ele próprio acreditava ser a cura para todos os males da humanidade.

Com tal campanha publicitária, sustentada pela mídia, e por jornais e noticiários do mundo todo, Ricardo conseguiu a atenção que tanto precisava.

E na noite da estréia lá estava ele, com um salão lotado por quase cem mil pessoas, das mais influentes, vindas dos quatro cantos do mundo, cheias de curiosidade pra saber o que aquele sujeito de um metro e setenta de altura diante deles, naquele palco, sozinho, sem orquestra nem nada, apenas com uma estação de som, e dezenas de caixas espalhadas ao longo do salão, tinha pra mostrar a eles, e ao mundo.

Ricardo foi até a estação de som, tirou de uma bolsa pendurada nela uma caixinha de CD, abriu-a, e pacientemente tirou o disco de dentro, e o pôs no tocador.

Apertou PLAY, e a sinfonia começou.

Os trinta segundos iniciais foram de estranheza e incômodo. Alguns demoraram pra entender o que exatamente era aquilo que ouviam. Não parecia música, não havia harmonia, sonoridade, melodia.

Muitos, logo de cara, se deram conta de que eram gemidos de homens e mulheres, gemidos que não custaram muito a reconhecer sob quais ocasiões ocorreram.

Mas a sensação de estranheza e incômodo foi aos poucos passando, e a cacofonia foi lentamente tomando uma forma, uma harmonia, uma cadência.

Imagens foram se formando na mente daqueles pessoas. Imagens de si mesmas, fazendo amor, se amando. Lembranças foram aflorando. De suas primeiras noites de amor, de quão desajeitadas elas foram. E em seguidas das próximas, onde tudo foi se tornando mais fácil, de forma mais encadeada, mais centrada.

Lembraram-se de suas melhores transas, das rapidinhas, e das sessões longas, que duravam uma madrugada inteira, ou uma tarde inteira, ou uma manhã.

Mas logo, elas não conseguiam mais enxergar a si mesmas. Elas começaram a enxergar outras pessoas.

A música, aquela sinfonia de gemidos que se tornavam cada vez mais harmoniosa, mais sincronizada, mais divina, alguns pensavam consigo mesmos, era algo que se tornava cada vez mais universal.

Começaram a enxergar homens que nem sequer conheciam, mulheres que jamais viram na vida, fazendo amor, perpetrando, através de danças exóticas e sensuais, a própria humanidade.

E Ricardo, naquela altura, começou a sorrir, ao ver o sorriso sincero na mente daquela platéia de milhares, e ao supor, corretamente, que o mesmo ocorria ao redor do mundo, em todos aqueles países, nos lares daquelas pessoas que viam e especialmente ouviam sua sinfonia.

Estavam todas conectadas entre si, através daquela música de corpos e almas se amando. Uma rede sonora mundial de gemidos.

O mundo inteiro, naquele instante, estava sentindo da forma mais pura o amor daqueles casais todos, e o amor dele todo pela vida que por ele circulava. Aquilo era o amor. Aquela rede de corpos, almas, vozes, circulando sem cessar.

E ninguém parou de sorrir nem por um mero instante até o final da execução da sinfonia.

E quando ela terminou, Ricardo permaneceu parado, de pé, diante daquela platéia que não conseguia retirar aquele sorriso de admiração e veneração do rosto. Daquela platéia que, um minuto depois, em silêncio se levantou, e imediatamente após explodiu em aplausos.

E aqueles aplausos Ricardo pôde ouvir não apenas vindos dali, mas do mundo inteiro.

Mas ele não sentiu que estavam aplaudindo ele. Não, ele sentiu o que realmente estava acontecendo ali. Ele ouviu o que estava realmente acontecendo ali.

O mundo inteiro aplaudia a si mesmo pelo amor que trazia em si.


(Conto escrito em 16/09/2008)

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